sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Tem muita pimenta na serra - Tu’kan pimi wî’po

Passa pimenta nos olhos menino, para andar na mata. Curumim do Monte Roraima. Anda com cuidado, pede licença pra folha do tajá. Passa pimenta nos olhos, em tuas feridas, forma tuas cicatrizes, mas não laves a cuia suja nas águas do rio, que causa tempestade, atrai assombração. Vai que em teu encalço está o Canaimé - outros canaimés - o invasor de tuas terras. Come pimenta, rapa tua cabeça e planta pimiro – pimenta do curupira. Planta em teus olhos a samaúma e a antena de celular, o orelhão da Embratel, os barcos a motor que substituem tuas canoas. Chama Pedro Álvares Cabral, para redescobrir estas terras, ou melhor, para cobri-las novamente, restaurando tuas florestas, redeflorando tuas iracemas. Chama o Senhor Pero Vaz de Caminha para que escreva outras notícias, as novas - um poemail para o Império.

Em meio à 41ª assembleia indígena, no idílico Lago Caracaranã, uns malucos fumavam maconha, enquanto todos tomavam seu banho matinal. O Caracaranã começou a sorrir sem parar. Suas ondas bailaram muito. Escutou-se um burburinho na água - Splop! Splop! - mini redemoinho de onde pulou um Peixe-Deus, e gritou: Vai Corinthians! Macunaima retornou do sul, com sotaque e escamas paulistas. Trouxe com ele a FUNAI, o SUS, e outros benefícios sociais. Depois vieram os tambores do Maranhão, una cosita o otra del Caribe e o Hare Hare Georgetown. A assembleia deu noticias ao Peixe-Deus: “Lá pra baixo tem uma cidade, está crescendo”. Eles reclamaram: “Macunaima mudou o mundo, e voltou mudado por ele. Lembra-te de teu povo revoltado. Pra quê tanta gente que subiu? Extremo-norte?” Macunaima saiu acuado; fugiu para encontrar resposta ou solução.

Quantas línguas tu tens na cabeça, menino? Profusão de etnias. Rápido, passa pimenta, curumim, te protege! Busca tua panela macuxi para trocar com teu parente, do outro lado da fronteira. That’s good! That’s very good! Deixa cair de teu cocar a pena, que para os lados de lá[1] há pena de morte. Noutros tempos Sir Arthur Conan Doyle também andou por aqui. Veio, como outros literatos, prender teu parente nas páginas de um mundo perdido.

Segue a rota mítica criada por teu Deus-Menino, levado, zombeteiro. Rega novamente a árvore da vida – Wazaká – árvore de todos os frutos. Na tríplice fronteira ergue tua bandeira, folhas de bananeira, leva teu arco e flecha, e não esqueças o GPS. Reza para teus deuses, se quiser escolhe deuses alheios, mas solta teu grito de Hallelujah! Areruia! Areruia![2] Dança em roda, mede teus passos pelos passos de teus parentes. Convide karaiwá pra provar tua carne de caça, a carne da batata da perna do curupira que caçaste.

Malagueta, murupi, olho-de-peixe, pede licença para o dono dos bichos, para o dono dos peixes. Pede licença ao IBAMA para fazer tua roça, para retirar a palha de tua maloca. Toma consulta aos pajés, aos tuxauas de tua aldeia. Toma consulta aos órgãos federais, consulta teu CPF, teu saldo devedor. Esconde-te, vai chover, nuvens de tags revoam sob tuas terras. São as ressonâncias de nossa alta tecnologia ancestral.

Macunaima? foi atrás da grande mestra, aquela Boiúna de outros contos. Lá encontrou tudo mudado, maracás mecanizados, e a dança do calypso. Nos barcos e portos índias ofereciam serviços aos gringos - “I love Brazil!”. Ao mesmo tempo, o povo dali reclamava da Cobra Grande: “Nossos mitos nos traíram! Pega! Ou foram nossos poetas?” Os dois empinaram a cabeça para o outro lado, e foram se esconder na casa de Norato, que após deixar o corpo de cobra se tonou puxador do Caprichoso. Depois do Festival os três amanheceram em um poema de Manoel de Barros.

Macunaima voltou? Está novamente modificando o território, como fazia nos tempos antigos? Ah! Não! Não é Ele. São as hidrelétricas. Poraquê[3] entrou pelos fios de alta tensão e trouxe estas notícias. Amigo, menino, tua rota mítica está perdida, destruídas tuas memórias. Tuas águas envenenadas, dejetos de mercúrio. Teu tamanduá virou gari nas estradas. Todos sonham com a cidade - teus parentes aprendendo a esquecer nas escolas! A bíblia vai te ensinar a ler a língua do napë. “O Monte Roraima não é tão importante quanto o Sinai”, eles vão dizer.

Libélula grande pousou em tua aldeia. Dentro o comandante do exército. Na praça fincou uma bandeira. Outra. Não mais tuas verdes folhas. Disse que era para segurança do país. Ensinou a assoviar o hino nacional. Pia’san veio, baforou fumaça, e disse: “coloca pimenta no ânus do menino, para crescer esperto, pra saber diferenciar o feio do belo, o falso do verdadeiro”. Escuta menino, as histórias de teu pajé! “Primeiras estrelas saíram do céu da boca e do cachimbo”. Ouve estas histórias à beira fogo, aprende com elas. Curumim, tira teu beiju de tapioca do sol, tira a muda da maniva, y lleva a tus hermanos. Vai visitar teus parentes que não reconhecem estas fronteiras. Aproveita que por lá com apenas cinco bolívares tu llenas el tanque de combustible de tu carro

Ai! brinca, ai! bebe caxiri, ai! toma banho no rio e viaja de avião. Viaja de avião e caminha três dias a pé para visitar o teu cunhado. Pega bicho-de-pé. Em tua aldeia a pimenta arde em arte, tropicália de sons e faunas insondáveis. Sobe nos galhos de Wazaká e come caju, banana, mamão, vira fogo e sobe a serra, vira água e desce a corredeira, vira vento, que assim ninguém te pega.

A assembleia está encerrada, menino. Passa pimenta na palavra, com caça, com força. O encontro acabou e os povos vão voltar à suas malocas. Não te preocupes com Macunaima. Ele adormece invisível em um verso autofágico deste poeta. Envelheças o rapé de paricá e ressoe sonoro estes escritos. Amanhã Vovó Sapa vem brincar na água.

Texto: Priscila Borges e Vinícius de Carvalho




[1]Na República Cooperativista da Guiana alguns crimes são unidos com Pena de Morte, acontecendo a diversos indígenas, guianenses e brasileiros.
[2] Rito sincrético indígena-cristão, herança das missões prestantes na tríplice fronteira de Brasil, Venezuela e Guiana.
[3] Peixe-elétrico.